DA “PEDAGOGIA DO NÃO” E DO “COGITO” DO SONHADOR, EM GASTON BACHELARD: PENSANDO UMA EDUCAÇÃO PARA A IMAGINAÇÃO
ON THE PEDAGOGY OF NO AND OF THE DREAMER’S “COGITO” IN GASTON BACHELARD: THINKING OF AN EDUCATION FOR THE IMAGINATION
DE LA PEDAGOGÍA DEL NO Y DEL “COGITO” DEL SOÑADOR EN GASTON BACHELARD: PENSAR UNA EDUCACIÓN BASADA EN LA IMAGINACIÓN
ALBERTO FILIPE ARAÚJO1 , JOAQUIM MACHADO DE ARAÚJO2, IDUINA MONT’ALVERNE CHAVES3
1 Professor Catedrático aposentado do Instituto de Educação da Universidade do Minho. Braga, Portugal <afaraujo@ie.uminho.pt> 2 Professor Auxiliar convidado da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa. Porto, Portugal <jmaraujo@porto.ucp.pt> 3 Professora Associada da Universidade Federal Fluminense(UFF - Niterói). Niterói, RJ, Brasil <iduina@globo.com>
RESUMO
Neste artigo, fundamentamos uma educação para a imaginação a partir da perspectiva de Gaston Bachelard, desenvolvida em torno da “Pedagogia do Não” e do “cogito” do sonhador, em oposição ao racionalismo dogmático e ao empirismo ingénuo, integrando a imaginação criadora através da qual o sujeito se faz imaginativo. Caracterizamos, assim, a “Pedagogia do Não” como uma pedagogia capaz de conduzir o diálogo e estabelecer equilíbrio entre pensamento e imaginação e atribui-lhe relevante papel na conjugação da objetividade científica e da imaginação poética, para, por fim, discutir a possibilidade de pensar uma educação para a imaginação na base do “cogito” do sonhador. Destacando os poderes e as funções da imaginação, quando recorrem às figuras de retórica, como a antítese, a hipérbole, a antífrase e o eufemismo, e ao jogo de imagens que esse uso comporta, realçamos a função eufemizante da imaginação e a sua capacidade de inovação semântica, susceptível de conduzir à “remitologização” do mundo, cumprindo um “novo espírito pedagógico” que, coerentemente com o “novo espírito científico”, conjugue a objetividade científica e a imaginação poética.
Palavras-chave: Pedagogia do Não; Pedagogia do Diálogo; Pedagogia do Eufemismo; Educação para a Imaginação
ABSTRACT
In this article the authors attempts to provide the foundations for an education for the imagination in accordance with Gaston Bachelard’s perspective developed around the No Pedagogy and the dreamer's “cogito” (as opposed to dogmatic rationalism and naive empiricism), whilst integrates the creative imagination, a fundamental dimension and tool to any imaginative mind. It thus characterizes the No Pedagogy as a pedagogy capable of conducting a dialogue and establishing a balance between thought and imagination while assigning it a relevant role by combining scientific objectivity and poetic imagination; it finally discusses the possibility of thinking of an education for the imagination on the basis of the dreamer's “cogito”. By highlighting the powers and functions of the imagination whilst using rhetorical figures such as antithesis, hyperbole, antiphrase and euphemism, and the play of images that this use entails, the article underscores the euphemizing function of imagination and its capacity of semantic innovation, by leading to the “remythologization” of the world, fulfilling a “new pedagogical spirit” that, coherently with the “new scientific spirit”, combines scientific objectivity and poetic imagination.
Keywords: No Pedagogy; Pedagogy of Dialogue; Pedagogy of Euphemism; Education for the Imagination
RESÚMEN
Este artículo propone un modelo de educación que toma como centro la imaginación. Parte de la perspectiva que Gaston Bachelard desarrolla, frente al racionalismo dogmático y al empirismo ingenuo, en torno a la Pedagogía del No y al “cogito” del soñador e integrando la imaginación creativa a través de la cual el sujeto se vuelve imaginativo. Caracteriza así a la Pedagogía del No como una pedagogía capaz de dialogar y establecer un equilibrio entre el pensamiento y la imaginación y le asigna un papel relevante en la conjugación de la objetividad científica y la imaginación poética para, finalmente, discutir la posibilidad de pensar en una educación para la imaginación sobre la base del “cogito” del soñador. Resaltando los poderes y funciones de la imaginación al recurrir a figuras de la retórica, como la antítesis, la hipérbole, la antífrasis y el eufemismo, y al juego de imágenes que implica este uso, el artículo destaca la función eufemística de la imaginación y su capacidad de innovación semántica, capaz de conducir a la “remitologización” del mundo, realizando así un "nuevo espíritu pedagógico" que, en consonancia con el “nuevo espíritu científico”, combina la objetividad científica y la imaginación poética.
Palabras clave: Pedagogía del No; Pedagogía del Diálogo; Pedagogía del Eufemismo; Educación para la Imaginación
INTRODUÇÃO
Importa assinalar que há uma diferença epistemológica entre “educar a imaginação” e “educar para a imaginação”. Neste artigo, pretendemos fundamentar a “educação para a imaginação” a partir de uma “Pedagogia do Não” e da figura do “cogito” do sonhador, na perspectiva de Gaston Bachelard, identificando as “afinidades eletivas” (Johann Wolfgang von Goethe) que a relação entre conceito e imagem pressupõe no seu diálogo complexo, e nem sempre visível: o conceito (Animus) tende a objetivar a imagem (Anima), e esta, por sua vez, tende a subjetivá-lo, e tudo se passa na esfera do “cogito” do sonhador (BACHELARD, 1984), onde há lugar tanto para a imaginação como para a consciência, ainda que matizada, aberta a uma subjetividade sensível à “tonalidade do ser” (BACHELARD, 1984). Colocando-nos sob o signo do racionalismo aberto e da imaginação criadora, neste artigo, visamos a acompanhar a cultura objetiva do conceito de uma cultura subjetiva (psicológica) e poética da imagem, evidenciando a síntese criadora tecida pelos pares razão/imaginação e conceito/imagem, e o ânimo que a imaginação criadora empresta a uma alma em busca de repouso (BACHELARD, 1992). No presente artigo, defendemos ainda que é possível ler a obra de Bachelard como aquela que, por um lado, contém elementos prometedores para se pensar uma “educação para a imaginação” ou, se quiser, para “formar o sujeito tornar-se mais imaginativo”, e que, por outro lado, é desejável perspectivar uma complementaridade entre “conceito” e “imagem” sob a figura do “cogito” do sonhador.
Este artigo estrutura-se em três partes: na primeira, abordamos a “Pedagogia do Não” como uma pedagogia do diálogo, que se caracteriza por um tempo de negação e um tempo de ordenação num nível superior dos polos antes antagónicos, sendo, por isso, uma pedagogia capaz de conduzir o diálogo entre pensamento (ciência - razão - animus) e imaginação (cosmologia poética - mythos - anima), “duas disciplinas difíceis de equilibrar”, como se refere o próprio Bachelard (1984, p. 152, tradução nossa); na segunda parte, destacamos o relevante papel a ser desempenhado pela “Pedagogia do Não”, por sua abertura para uma educação da imaginação, pondo em diálogo o novo espírito pedagógico, seja da imaginação poética, seja da objetividade científica, e apontando para a formação do conhecimento científico e para a construção do psiquismo imaginante (DUBORGEL, 1995); na terceira parte, discutimos a possibilidade de, na base do “cogito” do sonhador, pensarmos uma “educação para a imaginação”. Essa perspectiva faz do “cogito” do sonhador, ou seja, daquele sujeito imaginante que se deixa embalar pelo devaneio poético, sob a influência de uma “Pedagogia do Não”, uma figura heuristicamente prometedora.
A PEDAGOGIA DO NÃO COMO PEDAGOGIA DO DIÁLOGO
A “Pedagogia do Não” é devedora da Filosofia do Não, de Gaston Bachelard (1973), pois esta última é concebida “não como uma atitude de recusa, mas como uma atitude de conciliação” (BACHELARD, 1973, p. 15-16, tradução nossa), porquanto “ela procede, em nós e fora de nós, de uma atividade construtora. Ela afirma que o espírito é, no seu trabalho, um fator de evolução” (BACHELARD, 1973, p. 17, tradução nossa), e o movimento indutivo que a caracteriza concilia dialeticamente o que parece inconciliável e “determina uma reorganização do saber numa base alargada” (BACHELARD, 1976, p. 135, tradução nossa). Trata-se, assim, de uma “epistemologia indutiva e sintética” (BACHELARD, 1973, p. 142, tradução nossa), cuja garantia de validade reside na sua coerência intrínseca, exigindo transformações profundas no espírito: “[...] o espírito deve dobrar-se às condições do saber” (BACHELARD, 1973, p. 144, tradução nossa). Por outras palavras, “a ciência instrui a razão” (BACHELARD, 1973, p. 144, tradução nossa), e a lição a extrair da Filosofia do Não é, precisamente, a de que a “razão deve obedecer à ciência mais evoluída, à ciência em evolução” (BACHELARD, 1973, p. 144, tradução nossa).
Ao mesmo tempo que Bachelard contribui para a compreensão do “novo espírito científico”, o autor insurge contra determinadas orientações pedagógicas e aponta para outras mais congruentes, tendo em vista a provocar um diálogo entre essas orientações que faça emergir uma nova educação em ciência. Santos (1991) assinala, assim, três pares de pedagogias opostas: a oposição entre “a pedagogia dos factos”, que deixa a cultura geral entregue ao empirismo ingénuo, e a “pedagogia da razão”, que aproveita todas as ocasiões para raciocinar e enquadra os factos numa rede de razões; a oposição entre a “aprendizagem pela descoberta”, enquanto expressão redutora das propostas das designadas pedagogias ativas, e a “aprendizagem da descoberta das ideias”, que alarga o descobrir, entendido como “a única maneira ativa de conhecer”, e também as atividades intelectuais, na defesa de que “temos menos necessidade de descobrir coisas do que ideias” (BACHELARD, 1972, p. 10, tradução nossa) e que, para essa descoberta, aquele que descobre precisa se apoiar numa concepção prévia; e a oposição entre os “modelos de aquisição conceptual”, que partem do pressuposto de que a aprendizagem conceptual se inicia na escola e resulta de um processo de transmissão, em fragmentos, do professor para o aluno e de acumulação aditiva da informação recebida, e os “modelos de mudança conceptual”, que reconhecem os saberes já constituídos e trabalham no sentido da substituição das representações espontâneas e da superação de outros “obstáculos epistemológicos” à construção dos conceitos científicos.
Tal como o processo de “cura psicanalítica”, a “Pedagogia do Não” comporta dois tempos: o “tempo da psicanálise do conhecimento”, ou de desestruturação, que conduz à derrubada de obstáculos epistemológicos, e o “tempo da psicossíntese”, ou de (re)estruturação. O primeiro tempo é o de negação, e o segundo é o de ordenação; o primeiro é o de desaprendizagem, e o segundo é o de aprendizagem. Nesse sentido, a “Pedagogia do Não”, proposta por Bachelard, não se detém em colocar-se “contra”, mas se orienta no sentido do “para” e se alicerça no diálogo a ser estabelecido entre as razões explicativas de posições que se apresentam como antagônicas, num processo de reorganização em nível superior, num processo de construção de “sínteses transformantes”, em que também jogam um importante papel a criatividade e a imaginação.
Na verdade, desde algum tempo, suspeitávamos que o tipo de pedagogia que melhor poderia dar conta do par imaginação/imaginário, atendendo precisamente à sua natureza intrínseca, seria uma pedagogia próxima da Philosophie du Non, de Gaston Bachelard (1973), cujo valor heurístico bem compreendeu Georges Jean (1983).
Embora fosse tentador retomar as ideias desenvolvidas por Georges Jean (1983), mesmo reconhecendo o valor do seu contributo para se pensar uma “Pedagogia do Não”, a nossa reflexão privilegia, antes, a obra citada de Bachelard, à medida que ela oferece um conjunto de orientações pertinentes para se pensar uma “Pedagogia do Não” capaz de ajudar a formar o educando na via da imaginação, nele despertando a capacidade de se maravilhar, com “olhos fecundos” e “olhos férteis” (JEAN, 1983), diante da terra, do fogo, do ar e da água, enquanto representações imaginárias dos quatro elementos da natureza (terra, ar, fogo, ar), como também diante de si e do outro numa alteridade sem fim.
Reconhecendo, de acordo com Bachelard (1994), que os eixos da poesia e da ciência são inversos, o que esperamos, portanto, de uma “Pedagogia do Não” é que esta contribua para que tanto a poesia quanto a ciência sejam complementares e unidas “como dois contrários bem-feitos”. Esperamos, assim, que esse modelo de pedagogia seja capaz de, simultaneamente, aceitar e ultrapassar a antipatia original entre o “espírito poético expansivo e o espírito científico taciturno” (BACHELARD, 1994, p. 12, tradução nossa). Desse modo, estamos agora em condições de caracterizar como é que a “Pedagogia do Não” nos abre caminho para uma “educação da imaginação”.
UMA PEDAGOGIA ABERTA PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A IMAGINAÇÃO
Partimos da forte intuição de que a “Pedagogia do Não” pode desempenhar um papel relevante da imaginação na educação, entendida esta como Bildung4 (FABRE, 2015). Essa pedagogia pode contribuir para a formação do espírito do sujeito imaginante (Ernst Cassirer diria, antes: “animal simbólico”), na linha daquilo que Georges Jean (1983, p. 193, tradução nossa) chamou de “a dupla cultura continuada”, um tipo de cultura capaz de iniciar o sujeito (o aluno e o professor: “[...] o homem dedicado à cultura científica é um eterno aluno [...]. Permanecer um aluno deve ser o voto secreto de um mestre” (BACHELARD, 1970, p. 23, tradução nossa)) a conviver, simultaneamente, numa via poética, literária (o domínio da imagem e do onirismo poético), e numa via científica (o domínio do conceito e racionalismo aberto). Nesse sentido, vão, aqui, as palavras de Bruno Duborgel (1995, p. 310/317):
O NEP [Novo Espírito Pedagógico] da imaginação poética e o NEP da objectividade científica convergem e divergem a partir de um único acto de recusa absoluta, graças ao qual podem fazer desabrochar, no sujeito embrenhado na dupla via do conhecimento, a representação “estética” e a realidade objectiva do mundo.
Apontando, através dos seus dois vectores paradoxais, ao mesmo tempo para a formação do conhecimento objectivo e para a construção do psiquismo imaginante, o NEP destina o sujeito da educação a uma dupla “plenitude” e convida-o para uma criação dupla do seu eu e do mundo.
Nesse sentido, a “Pedagogia do Não” afirma-se como uma “Pedagogia do diálogo” à semelhança daquilo que Bachelard (1970)reclamava para a sua filosofia, cujo sentido é o seguinte:
A Física determina como uma eminente síntese, uma mentalidade abstrata-concreta. Repetidamente, ao longo desta obra [Le Rationalisme Appliqué (1949) (O Racionalismo Aplicado)] ensaiaremos caracterizar esta mentalidade na sua dupla ação de abstração e de concretização, sem nunca quebrar o hífen imposto pela linguagem pelo desconhecimento dos princípios mais unitários para compreender a reciprocidade das dialéticas e que vão interminavelmente, e nos dois sentidos, do espírito às coisas. (BACHELARD, 1970, p. 1, grifo do autor, tradução nossa).
Trata-se, pois, de uma pedagogia particular, que procura dialogar entre regimes diferentes, não dizendo opostos, da psique (os polos diurno e noturno), encarada como uma espécie de retificação do saber pedagógico. Desse modo, essa pedagogia representa um contributo heterodoxo para alargar os quadros desse mesmo tipo de conhecimento ao nível da sua extensão e da sua profundidade. Numa palavra, ela é encarada como complemento inovador de um pensamento pedagógico e educativo já sistematizado. A “Pedagogia do Não” aproveitaria, assim, todos os momentos não só para trabalhar os conceitos próprios da tradição educativa como igualmente para dar uma maior atenção às imagens literárias, hortícolas, do crescimento, orgânicas, artísticas (como é o caso da escultura e mesmo da pintura), da viagem, rítmicas, do par modelagem/plasticidade da alimentação, do mobilar, do enchimento, do par depósito/depositário (reenvia para a “educação bancária”, de autoria de Paulo Freire (1975)) e do par luz/trevas, dentre outras imagens que sempre estão presentes no seio do discurso pedagógico e educativo em geral (CHARBONNEL, 1991-1993; HAMELINE, 1986, 2000; SCHEFFLER, 2003).
Trata-se, dessa forma, de um tipo de pedagogia que, em ruptura com a tradição educativa positivista e normativa, procura, sinteticamente, conciliar, ainda que respeitando cada uma das esferas, os dois polos da atividade psíquica, quais sejam, a razão (conceitos: polo masculino - arquétipo animus) e a imaginação (imagens: polo feminino - arquétipo anima). Nesse contexto, pensamos que essa “Pedagogia do Não” parece bem colocada para “sonhar os devaneios e pensar os pensamentos”, mesmo admitindo que são “duas disciplinas difíceis de equilibrar”, como reconhece Bachelard (1984, p. 152, tradução nossa). Reside, pois, aqui um dos principais desafios que se colocam, precisamente, a essa “Pedagogia do Não”, não devendo ela esmorecer em pensar os conceitos e sonhar as imagens, a fim de complementar, ainda que com uma “saudável precaução”, essa atividade espiritual numa coesão de “contrários bem-feitos” (BACHELARD, 1994). Por outras palavras, é desejável que uma “Pedagogia do Não” estranhe, num primeiro momento, antipaticamente, uma possível conciliação entre as imagens próprias do espírito poético e os conceitos do espírito científico, para, já num segundo momento, realçar o “valor sintético” da dialética bachelardiana.
Por fim, importa salientar que, na perspectiva aqui desenvolvida, a “Pedagogia do Não” é aquela que dialoga, comprometidamente, com o conceito (domínio do cogito) e com a imagem (domínio do sonhador), na base de um diálogo aberto que prioriza o diálogo entre a razão e a imaginação, ainda que tenha admitido, inicialmente, o seu antagonismo. Seguidamente, tratamos do “cogito” do sonhador como aquela figura ideal e relevante para se compreender que uma “educação para a imaginação” não só é possível como também desejável.
PENSAR UMA EDUCAÇÃO PARA A IMAGINAÇÃO SOB O SIGNO DO “COGITO” DO SONHADOR
Animados por uma “Pedagogia do Não”, defendemos que esse tipo de pedagogia se assume como uma via prometedora e mesmo heuristicamente produtiva para pensarmos uma “educação para a imaginação”, em que a figura do “cogito” do sonhador (BACHELARD, 1984) desempenha um papel de mediador, ou seja, um papel de Hermes, evocando-se aqui o próprio deus grego da mediação, das passagens, enfim do diálogo (KERÉNYI, 2003, RIBEIRO, 2010). Mas, também, não podemos desconhecer o desafio que a nossa reflexão encerra, porquanto a poesia (domínio da imagem) e a ciência (domínio do conceito) opõem-se desde o início, como Bachelard (1984, p. 45/47, tradução nossa) sublinha muito claramente, nos trechos a seguir:
Entre o conceito e a imagem, nenhuma síntese. Tampouco essa filiação sempre dita, jamais vivida, pela qual os psicólogos fazem o conceito emergir da pluralidade das imagens. Quem se entrega com todo o seu espírito aos conceitos, com toda a sua alma às imagens, sabe bem que os conceitos e as imagens se desenvolvem em linhas divergentes da vida espiritual. Talvez seja bom excitar uma rivalidade entre a atividade conceitual e a atividade da imaginação. Em todo o caso, só se encontra desengano quando se pretende fazê-las cooperar. A imagem não pode fornecer matéria ao conceito. O conceito, dando estabilidade à imagem, lhe asfixiaria a vida.
[...] Assim, imagens e conceitos formam-se nesses dois polos opostos da atividade psíquica que são a imaginação e a razão. Há entre ambas uma polaridade de exclusão. Nada de comum com os polos do magnetismo. Aqui os polos opostos não se atam - repelem-se. É necessário amar os poderes psíquicos com dois amores diferentes quando se ama os conceitos e as imagens, os polos masculino e feminino da psique.
Afirma o autor que há uma oposição irredutível entre conceito e imagem que se deve, pelo menos do ponto de vista metodológico, “opor ao espírito poético expansivo o espírito científico taciturno”, mas, também, convém ressaltar que, apesar dessa sua “antipatia prévia”, ele afirma igualmente uma “saudável precaução” (BACHELARD, 1994, p. 12, tradução nossa), pelo que convém explorar esse sinal saudável de precaução pelo lado do “cogito” do sonhador, tal como ele foi apresentado pelo autor. A esse respeito, estamos bem conscientes da dificuldade da nossa tarefa, especialmente quando somos alertados pelo próprio Bachelard, quando ele diz: “Tarde demais conheci a tranquilidade de consciência no trabalho alternado das imagens e dos conceitos, duas tranquilidades de consciência que seriam a do pleno dia e a que aceita o lado noturno da alma” (BACHELARD, 1984, p. 47, tradução nossa).
Permitimo-nos duvidar, metodicamente, dessa grave sentença pela simples razão de que, recordando o aforisma de que nem tudo aquilo que parece o é, assim como nem tudo aquilo que é o parece, noutras partes da sua obra, Bachelard abre caminho a uma provável esperança de conciliação entre o conceito e a imagem. Com efeito, lê-se em La Psychanalyse du Feu (1994) (A Psicanálise do Fogo) que: “Tudo o que a filosofia pode esperar é tornar a poesia e a ciência complementares, uni-las como dois contrários bem-feitos” (BACHELARD, 1994, p. 12, tradução nossa). Também em L’Eau et les Rêves (1942) (A Água e os Sonhos), o autor escreve sobre o “casamento de contrários” que o conceito e a imagem representam, à semelhança do par água/fogo: “No reino das matérias, não se encontrará nada de mais contrário que a água e o fogo. A água e o fogo oferecem, talvez, a única contradição verdadeiramente substancial. Se logicamente um chama o outro, sexualmente um deseja o outro” (BACHELARD, 1976, p. 133, tradução nossa).
O “cogito” do sonhador é um sujeito “sonhante”. Desse modo, como poderá ele andar desencontrado do “casamento de contrários” entre o “cogito” do sonho noturno e o “cogito” do devaneio, isto é, dos “sonhos da substância que sonha [ou “sonhante”]” (BACHELARD, 1984, p. 128, tradução nossa)? E como poderemos imaginar ser possível que o “cogito” do devaneio possa dispensar os murmúrios e as subtilezas da imaginação transfiguradora e criadora (WUNENBUREGER, 2012)? A esse respeito, as palavras de Bachelard (1984, p. 129/131, grifos do autor, tradução nossa), a seguir, não podem ser mais convidativas e convincentes:
o homem desperto, o homem que as ideias acordam, o homem que a imaginação convida à subtileza. [...] o sonhador de sonho noturno é uma sombra que perdeu o próprio eu, o sonhador de devaneio, se for um pouco filósofo, pode, no centro do seu eu sonhador, formular um cogito. Noutras palavras, o devaneio é uma atividade onírica na qual subsiste uma clareza de consciência. O sonhador de devaneio está presente no seu devaneio. Mesmo quando o devaneio dá a impressão de uma fuga para fora do real, para fora do tempo e do lugar, o sonhador do devaneio sabe que é ele que se ausenta - é ele, em carne e osso, que se torna um “espírito”, um fantasma do passado ou da viagem.
O ser do sonhador de devaneios se constitui pelas imagens que ele suscita. A imagem nos desperta do nosso torpor, e esse despertar se anuncia num cogito.
Uma valorização a mais e eis-nos em presença do devaneio positivo, de um devaneio que produz, de um devaneio que, qualquer que seja a fraqueza daquilo que ele produz, bem pode ser denominado devaneio poético. Nos seus produtos e no seu produtor, o devaneio pode receber o sentido etimológico da palavra poético. O devaneio reúne o ser em torno do seu sonhador. Dá-lhe ilusões de ser mais do que ele é. Assim, sobre o menos-ser que é o estado de relaxamento no qual se forma o devaneio se desenha um relevo - um relevo que o poeta saberá inflar até torná-lo um mais-ser. O estudo filosófico do devaneio convida-nos a nuances de ontologia. E esta ontologia é fácil, porque é a ontologia do bem-estar - de um bem-estar na medida do ser do sonhador que sabe sonhá-lo. Não existe bem-estar sem devaneio. Nem devaneio sem bem-estar. Assim, pelo devaneio, descobrimos que o ser é um bem. Um filósofo dirá: o ser é um valor.
Como dar conta da dimensão onírica do “cogito” sem evocar ainda que brevemente, um dos seus aspetos mais marcantes que é o da imaginação? O “cogito” do sonhador é aquele que devaneia e poder-se-á devanear fora da graça da imaginação? Pensamos seriamente que para bem devanear é preciso que o sujeito não somente esteja receptivo como igualmente conviva e comprometa-se (BACHELARD, 1972) com o fluxo de imagens diurnas (polo diurno da psique: via da abstração racional do espírito que caracteriza a ciência abstrata do mundo) e noturnas (polo noturno da psique: via da imaginação poética e espontânea que caracteriza o devaneio concreto sobre a Natureza) que anima a sua psique numa espécie de confluência malhada (pensamos na L’Âme Tigrée (1980) (A Alma Tigrada), de Gilbert Durand). Ambos os polos da psique, no seu antagonismo, constituem a imaginação que Bachelard (2004, p. 5/6, grifos do autor, tradução nossa) define do seguinte modo:
Pretende-se sempre que a imaginação seja a faculdade de formar imagens. Ora ela é antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, ela é sobretudo a faculdade de libertar-nos das primeiras imagens, de mudar as imagens.
O vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é imagem, mas imaginário. O valor de uma imagem mede-se pela extensão da sua auréola imaginária. Graças ao imaginário, a imaginação é essencialmente aberta, evasiva. É ela, no psiquismo humano, a própria experiência da abertura, a própria experiência da novidade.
E ainda:
A imaginação não é, como o sugere a etimologia, a faculdade de formar as imagens da realidade; ela é a faculdade de formar as imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. Ela é uma faculdade de sobre-humanidade. [...] A imaginação inventa mais que as coisas e os dramas, ela inventa a nova vida, ela inventa do novo espírito; ela abre os olhos que têm novos tipos de visão. Ela verá se ela tem ‘visões’. Ela terá visões se ela se educa com os devaneios antes de educar-se com as experiências, se as experiências funcionam em seguida como provas dos seus devaneios. (BABHELARD, 1993, p. 25, grifo do autor, tradução nossa).
Face ao exposto, pensamos que, nesta parte dedicada ao “cogito” do sonhador, é sob o seu signo, de acordo com as orientações de “Pedagogia do Não” por nós esboçadas acima, que melhor se pode pensar a complementaridade entre o conceito e a imagem, já não num clima de divergência de contrários, de oposição entre diurno e noturno, mas, antes, num clima de convergência, em que o seu valor sintético nunca deixou de ser realçado, em ordem a uma “educação para a imaginação” simultaneamente sensível às formações científica e poética, à sociedade escolar e à solidão cósmica (WUNENBURGER, 2012).
Assim, esse tipo de educação tem a grande vocação de ser sensível às “hormonas da imaginação”, que são os quatro elementos da natureza (a terra, a água, o fogo e o ar), a fim de permitir assegurar ao sujeito imaginante uma criatividade pessoal e liberta de fantasmas, de modo que ele assuma a experiência da alteridade não somente em relação ao outro inseparável já da dimensão ética (WUNENBURGER, 2012) como também face ao cosmo. Correlativamente, não vemos como é que uma “educação para a imaginação” se possa furtar ao diferente, à novidade, ao infinito de possibilidades outras (recordando, aqui, a dimensão do imaginário nas suas diferentes matizes: a utópica, por exemplo), enfim, como poderá escapar ao apelo, ao chamamento se preferirem, do algures?
E, aqui, cruzamo-nos com a “eufemização” e com os seus poderes baseados, dentre outras possibilidades, nas figuras da retórica, das quais destacamos, na linha de Gilbert Durand, a “antítese” e a “hipérbole”, no quadro do regime diurno da imagem (estruturas heroicas ou “esquizomorfas”): “A imaginação eufemiza pela hipérbole e a antítese conjugadas, e mesmo quando ela representa hiperbolicamente as imagens do tempo, é ainda para exorcizar o tempo e a morte que ele traz em si” (DURAND, 1984, p. 487, tradução nossa). Destacamos ainda a “antífrase”, no quadro do regime noturno da imagem (estruturas místicas do imaginário): “Quanto às estruturas místicas, elas dão-nos a conhecer o estilo da antífrase, do eufemismo propriamente dito. [...] Mas o estilo da antífrase conserva o traço semântico do processo de dupla negação, ele representa o triunfo estilístico da ambivalência, do sentido duplo” (DURAND, 1984, p. 488, grifo do autor, tradução nossa).
A “função de eufemização” tem a ver com a transmutação, com a transfiguração, com a transformação do horrendo, do monstruoso, do sofrimento em algo de mais aceitável, em algo mais razoável do ponto de vista humano. Ela assume-se, portanto, como uma esperança graças às imagens da verticalidade, que são imagens que dispõem de “um coeficiente de equilíbrio, de libertação e de felicidade” (WUNENBURGER, 2012, p. 212, tradução nossa). Esses tipos de imagens em muito contribuem para exorcizar as imagens das trevas e da queda, as quais estão, por sua vez, ligadas não somente a uma psicologia da gravidade (BACHELARD, 1992a) como também à “queda imaginária”, no quadro de uma imaginação do movimento (BACHELARD, 2004). A diversidade ligada às imagens da verticalidade, aéreas, contrapõe-se às imagens das trevas e da queda através dos devaneios de ascensão que implicam, necessariamente, as imagens aéreas ligadas à verticalidade, ao sonho do voo, à imaginação do movimento e, por fim, ao crescimento psíquico5 (BACHELARD, 2004).
Nessa linha, também cabe uma palavra para a “vida e morte das imagens”, que nos conduz ao tema da “função de eufemização” da imaginação no pensamento bachelardiano, particularmente quando Jean-Jacques Wunenburger (2012) se refere praticamente às imagens que ajudam a “exorcizar a morte” . Essas imagens, em Bachelard, especialmente em La terre et les rêveries de la volonté (1992a) (A Terra e os Devaneios da Vontade) e L’Air et les Songes (2004) (O Ar e os Sonhos), opõem-se àquelas que caracterizam a “Psicologia da Gravidade”, que são imagens pessimistas, das trevas, de cariz negativo, de vazio e de fracasso, caraterísticas de certas imagens terrestres que caracterizam o modo de ser daqueles sujeitos pesados, lentos e deprimidos, introvertidos, que vivem sob o signo da queda, do abismo, do inferior, da vertigem e do baixo:
A experiência da vertigem e do seu cortejo de imagens ameaçadoras revela a Bachelard que o ser não se reduz a uma força criadora que anima o onirismo feliz, mas que está, no seu centro, acima de uma espécie de vazio original, de um buraco do ser, o que explica a fragilidade, a solidão e a angústia. (WUNENBURGER, 2012, p. 238, tradução nossa).
Felizmente, que para contrariar esses tipos de imagens, há um outro complexo de imagens ligadas à “psicologia ascensional” (BACHELARD, 2004, p. 16), que é produto de uma imaginação do movimento, ligado ao superior, à luz, à verticalidade, à arte de voar e às alturas. O que faz com que elas sejam naturalmente ligeiras, leves, aéreas, do alto, enfim, ligadas ao voo e à sua dinâmica própria e aos tipos de sujeitos extrovertidos e espiritualmente ativos. O simbolismo do voo exprime aquela dimensão da imaginação “caracterizada por uma força ascensional que alarga a esfera do Eu, que o faz participar nos objetos metamorfoseados pelas valências meta-físicas [sic], suprassensíveis despertadas pelo devaneio [aéreo e dinâmico]” (WUNENBURGER, 2012, p. 238, tradução nossa).
Então, poderíamos dizer que as imagens ligadas, preponderantemente, à verticalidade, à luz, ou seja, à claridade constituem “a primeira via para suportar uma angústia primária que resulta de um não-sentido [sic] ontológico” (WUNENBURGER, 2012, p. 239, tradução nossa), que, aliás, a experiência da própria morte, do vazio existencial, do nada e mesmo da indeterminação parecem representar: “No limite, os sonhos absolutos mergulham-nos no universo do Nada” (BACHELARD, 1984, p. 125, tradução nossa). Assim, podemos afirmar que os devaneios de ascensão, da verticalidade, aéreos, tal como Bachelard nos ensinou a propósito da imaginação dinâmica do movimento, aérea ou da altura, especialmente em L’Air et les Songes (2004), parecem explicar, por sua vez, aquilo que Gilbert Durand denomina de função eufemizadora da imaginação, o que é, antes de mais nada,
[...] uma função de eufemização, não um simples ópio negativo, máscara que a consciência ergue face à horrenda figura da morte, mas pelo contrário dinamismo prospectivo, que através de todas as estruturas do projecto imaginário, tenta melhorar a situação do homem no mundo. [...] o facto de que a morte é negada, é eufemizada em extremo numa vida eterna, no interior das pulsões e das resignações que inclinam as imagens para a representação da morte. O facto de desejar e de imaginar a morte como um repouso, um sono, esse mesmo facto a eufemiza e a destrói. (DURAND, 1979a, p. 121-122, grifo do autor).
No mesmo sentido, em Les Structures Anthropologiques de L’Imaginaire (1969) (As Estruturas Antropológicas do Imaginário), a propósito da “função fantástica” como função primordial do Espírito que já integra em si a memória como uma espécie de muralha contra o tempo, Durand (1984, p. 467-472, grifo do autor, tradução nossa) escreve:
Mas se a memória tem o caráter fundamental do imaginário, que é a de ser eufemística, ela é também, pela mesma razão, antidestino e opõe-se ao tempo. [...]
Longe de fazer a apologia do tempo, a memória, como o imaginário, opõe-se às facetas do tempo, e assegura que o ser, contra a dissolução do devir, a continuidade da consciência e a possibilidade de retornar, de regressar, além das necessidades do destino. [...]
É contra o nada do tempo que se ergue toda a representação, e sobretudo a representação em toda a sua pureza de antidestino: a função fantástica de que a memória é apenas um incidente. A vocação do espírito é a insubordinação à existência e à morte, e a função fantástica manifesta-se como a patroa desta revolta. [...]
O sentido supremo da função fantástica, erigida contra o destino mortal, é portanto o eufemismo. Quer dizer que há no homem um poder de melhorar o mundo. Mas esta melhoria não é, tampouco, vã especulação ‘objetiva’, visto que a realidade que emerge no seu nível é a criação, a transformação do mundo da morte e das coisas no da assimilação à verdade e à vida.
[...] [reconhece-se a] imaginação em todas as suas manifestações: religiosas e míticas, literárias e estéticas, este poder realmente metafísico de dirigir as suas obras contra a “podridão” da Morte e do Destino. [...]
Luta contra a podridão, exorcismo da morte e da decomposição temporal tal nos parece, no seu conjunto, a função eufemística da imaginação.
O exposto permite-nos pensar uma “educação para a imaginação” não só sob o signo do “cogito” do sonhador como também sob a orientação de uma “Pedagogia do Não”, que agora se torna, além de outras caraterísticas expostas acima, também uma “Pedagogia do eufemismo”, como aquela pedagogia que se preocupa em aliviar, senão mesmo curar, por intermédio da razão e da imaginação, o declínio ou mesmo o “fim da educação” (POSTMAN, 2002).
Há um mal-estar profundo constantemente marcado pelas mais diversas taras e experiências pedagógicas as quais, a nosso ver, comprometeram e ainda comprometem a libido educandi (libido “educante”) de uma educação que pretende, hoje mais do que nunca, ser criticamente problematizadora, evocando aqui a memória de Paulo Freire, à medida que o “homem como ser inconcluso” (FREIRE, 1975, p. 79) jamais deverá perder a consciência da sua inconclusão e, se assim é, não deverá nunca abandonar o seu movimento permanente de “busca do Ser Mais” (FREIRE, 1975, p. 106).
E não será essa “busca do ser mais” já uma espécie de “recherche du temps perdu” (em busca do tempo perdido) (1906-1922), como Marcel Proust magistralmente escreveu? E, se assim for, já por efeito de uma eufemização da imaginação tão desejada, não se converterá já esse tempo num feliz temps retrouvé (tempo reencontrado) (publicação póstuma em 1927)? Parece-nos bem que sim, se encararmos esse mesmo “tempo reencontrado” como um “suplemento de alma” e mesmo da memória, como aquele espaço que nos permite recordar, rememorar, enfim, devanear, um tempo metamorfoseado, transmutado se preferir, em espaço pela ação eufémica. Desse modo, não se admira que Gilbert Durand tenha escrito o que se segue:
Nesta função fantástica reside esse ‘suplemento de alma’ que a angústia contemporânea procura anarquicamente sobre as ruínas dos determinismos, porque é a função fantástica que acrescenta à objetividade morta o interesse assimilador da utilidade, que acrescenta à utilidade a satisfação do agradável, que acrescenta ao agradável o luxo da emoção estética, que, por fim, numa assimilação suprema, depois de ter semanticamente negado o negativo destino, instala o pensamento no eufemismo total da serenidade ou da revolta filosófica ou religiosa. E sobretudo, a imaginação é o contraponto axiológico da ação. [...]
Por isso, o imaginário, longe de ser paixão vã, é ação eufémica e transforma o mundo segundo o Homem de Desejo: A poesia é um piloto, Orfeu acompanha Jasão. (DURAND, 1984, p. 500/501, tradução nossa).
Todas essas considerações certamente nos ajudam a compreender melhor que a “educação para a imaginação” bem poderia ser chamada, como nos ensinou inspiradamente o poeta Manoel de Barros (2016), de “didática da invenção”. E esta, como não poderia deixar de ser, diz-se poeticamente na imagem literária, em que um vidro mole é um rio e vice-versa:
O rio - escreve o poeta - que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa chama-se enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem (BARROS, 2016, p. 285-286).
O nome empobrece a imagem porque espartilha a inovação semântica (um dos traços da metáfora) que lhe é própria (“Ela [a imagem literária] é polissemântica” (BACHELARD, 2004, p. 327, tradução nossa)), como que estrangulando a sua novidade e surpresa semântica insufladas pelas “hormonas da imaginação”, as quais são os quatro elementos cósmicos: terra, ar, fogo e água (BACHELARD, 2004). Assim, o nome é filho do conceito (função do real), enquanto a imagem é fruto da função do irreal, e conforme as palavras do autor:
Para merecer o título de imagem literária, é necessário um mérito de originalidade. Uma imagem literária é um sentido em estado nascente; a palavra - a velha palavra - recebe aqui uma nova significação. Mas isso ainda não basta: a imagem literária deve enriquecer-se de um onirismo novo. Significar outra coisa e fazer sonhar de outro modo, tal é a dupla função da imagem literária. (BACHELARD, 2004, p. 324, tradução nossa).
E foi precisamente uma imagem literária portadora de um sentido novo, ou seja, um sentido figurado (domínio do estranho e da transgressão), o domínio da metáfora (WUNENBURGER, 2012, tradução nossa), uma palavra revestida de uma nova significação, que Manoel de Barros nos trouxe, distante já do sentido próprio (sentido primário: domínio do normal, do corrente e da ordem). Trouxe-nos, na verdade, uma imagem sonora (“Ela [a imagem literária] é polifónica” (BACHELARD, 2004, p. 327, tradução nossa)), que apela a uma onirismo que nos sobressalta, a uma imaginação que em nós murmura e, por fim, a um pensamento que se pretende palavra escrita: “A imaginação encanta-se da imagem literária. A literatura não é portanto o sucedâneo de nenhuma outra atividade. Ela realiza um desejo humano. Ela representa uma emergência da imaginação” (BACHELARD, 2004, p. 324, grifo do autor, tradução nossa).
Em toda imagem literária, sente-se o movimento dinâmico das palavras que se organizam de modo a expressar a fala dos pensamentos entremeados com os fragmentos oníricos constituídos desde as imagens mais primitivas, as imagens naturais, enfim, as imagens originais ou primeiras, como é o caso da árvore, da flor, da forja, do rochedo, do cristal, da imensidão cósmica ou da casa (WUNENBURGER, 2012). Essas imagens acabam por imiscuir-se na literatura e na poesia as quais o génio de cada autor transporta em um estatuto de novidade universal e interpelante:
A imagem literária é, portanto, tanto uma categoria como um acontecimento: chama-se literária, a imagem que se encontra a meio-caminho do sonho e da imagem erudita, que é fonte de um grande número de metáforas que a constituem como um comentário; mas cada imagem literária, fruto de uma criatividade verbal, apresenta-se também como um jorro imprevisível, uma renovação única de imagens preexistentes, cuja forma mais elevada é a metáfora pura, reduzida a uma forma verbal concisa. (WUNENBURGER, 2012, p. 108, tradução nossa).
Uma “educação para a imaginação”, enquanto “didática da invenção”, de imagens que enobrecem os nomes, e de nomes que enriquem, por sua vez, as imagens mais profundas que em nós habitam, as quais Jung (1991, 1995), e depois dele Bachelard, denomina de arquétipos supra-pessoais e universais, deverá sempre guardar na sua “memória como amplo e infinito santuário” (SANTO AGOSTINHO, 2020), apesar de haver o nome técnico de enseada, o “rio que fazia uma volta atrás de nossa casa” que “era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa” (BARROS, 2016, p. 285).
CONCLUSÃO
Este artigo parte da “Pedagogia do Não” e do “cogito” do sonhador, desenvolvidos por Gaston Bachelard. Concebemos aqui a “Pedagogia do Não”, inspirada na Philosophie du Non (Filosofia do Não), como aquele tipo de pedagogia que, através da orientação epistemológica dos conceitos que a estruturam, pode contribuir, mais pertinentemente, para educar o sujeito, o qual não necessariamente esteja na sociedade escolar, para compreender criativamente o universo da imaginação e da própria “poética do devaneio”.
Explanamos também a importante noção de “cogito” do sonhador, a qual se afasta do mero sonho noturno (fluxo de imagens espontâneo e desordenado), sob o domínio das forças obscuras e anárquicas, impulsivas e involuntárias do inconsciente individual, para, antes, privilegiar o devaneio poético com as suas raízes no inconsciente coletivo, com os seus arquétipos, muito especialmente o par animus/anima. O sujeito imaginante, sob o signo do “cogito” do sonhador, como inspirador de ficções e de obras inspiradas, por exemplo, num jogo de imagens eufemizantes da vida e da morte, sente-se, por um lado, mais perto de uma poética cósmica, das imagens e símbolos que valem à pena e, por outro lado, mais próximo do seu destino e de assumir uma nova orientação de ser.
Nesse sentido, uma “educação para a imaginação” que torne o sujeito mais sensível à “vida das imagens” (WUNENBURGER, 2012), sem contudo se esquecer da dimensão ontológica e ética, é naturalmente bem-vinda e até desejada para criar uma Bildung (WUNENBURGER, 1993), modelada pela imagem inspiradora da Fénix renascida (o pássaro mítico que morre no fogo antes de renascer para a vida). Uma imagem feliz que convide a uma atitude pedagógica que se pretenda “remitologizadora” é, assim, indissociável do devaneio engendrado pelo “cogito” do sonhador. Por outras palavras, cabe a esse tipo de educação ensinar o sujeito a conviver tranquilamente com a “tensão permanente entre a necessidade e a liberdade, entre a objetividade e a subjetividade” (WUNENBURGER, 2012, p. 213, tradução nossa), assim como desenvolver no “cogito” do sujeito uma sensibilidade ativa face ao conceito (espírito científico: esfera da abstração e da relação voluntarista e viril - animus) e à imagem (poética: esfera do concreto e da relação intimista - anima). E, desse modo, o ideal do “homem bidimensional” pode surgir animado por um paradigma educacional de dupla faceta que aceita a própria contradição como algo de natural e mesmo necessária - o ideal da “humanidade bifronte” de que fala Jean-Jacques Wunenburger (2012).
Por fim, importa enfatizar que, sob o efeito e o estímulo da “Pedagogia do Não”, o “cogito” do sonhador torna-se mais expansivo, mais significativamente criativo, à medida que, ao reunir em si as “ideias motrizes do espírito” responsáveis pela formação dinâmica das representações abstratas (domínio do conceito) e das representações simbólicas, metafóricas ou alegóricas (domínio da imagem) (WUNENBURGER, 2012), afirma-se já como uma esperança auspiciosa para equilibrar a disciplina dedicada aos devaneios e a disciplina dedicada aos pensamentos: uma tarefa sempre difícil. Mas, compreender essa tarefa, parafraseando o próprio Bachelard, já não será um ato do devir de um espírito insatisfeito?
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